Seguir a ditadura da felicidade de ter casa, sucesso profissional e curtidas nega a importância das frustrações
A busca pela felicidade é algo que acompanha o ser humano desde sempre, mas essa ambição parece ter sido simplificada a ponto de ser preciso seguir quase uma receita de bolo. Basta casar, ter filhos, um bom emprego, um corpo “bonito” e viajar, sem esquecer de deixar tudo registrado e com muitas curtidas nas redes sociais. Por outro lado, sem espaço para a infelicidade, a obrigatoriedade do bem-estar deixou os indivíduos culpados por não estarem o tempo todo de bem com a vida.
Necessidade constante de bem-estar adoece as pessoas |
O que muita gente procura hoje são estados eufóricos, explica o filósofo e escritor Mário Sérgio Cortella, em um vídeo na internet. “A posse de bens materiais, de fato, produz uma felicidade rasa, momentânea, episódica, veloz, e aí a pessoa entra num processo obsessivo de imaginar que a ‘consumolatria’ – a posse contínua de coisas – é que vai deixá-la feliz, e isso, sim, leva a um estado de ansiedade constante”, diz.
Esse aparato de comandos que nos ordenam o tempo todo a viver melhor acaba por tentar negar e afastar sentimentos importantes para vida, como a angústia e a tristeza. “As pessoas não aceitam que você esteja triste. E as redes sociais pioram isso. Lá, todo mundo quer mostrar que está bem, que é feliz com tudo e que nada o afeta”, conta a estudante Livian Vieira, 16.
É como se estar triste equivalesse a adoecer, segundo a terapeuta do Instituto Luz Diamante Laura Conde Baeta. Ela trabalha desenvolvendo o despertar da consciência nas pessoas e diz que muitos pacientes têm medo de mostrar o que estão sentindo, com medo de não serem aceitos. “Estar triste é ruim e não pode, mas, na verdade, esse ‘não pode’ já é tristeza”, observa.
Ela conta que atendeu uma jovem de 21 anos com síndrome de Down que estava reclamando que não era feliz por conta de sua condição. “As pessoas acham que ser feliz é ter isso, fazer aquilo, que a felicidade está condicionada. E, no caso dela, ela não poderia ser feliz por causa da síndrome. Tive que ir mostrando que não quer dizer que todo mundo que, para ela, era normal também era feliz”, relata.
A própria tristeza tem sua importância, diz a terapeuta. “Deixar de vivê-la é negar a condição humana. No dia em que meu pai morreu, eu estava dirigindo sabendo que naquele momento eu estava triste, mas percebendo que, dentro de mim, minha felicidade não havia deixado de existir”, diz.
Culpa. No ensaio “The Happiness Industry” (“A Indústria da Felicidade”), o acadêmico britânico William Davies constatou que a situação se agravou a partir do momento em que se formou em torno dessa “imposição social” toda uma cadeia econômica para mensurar esse estado de plenitude tão almejado por todos.
O problema é que essa busca incessante gera a culpabilização do indivíduo por não se sentir completamente feliz. Com isso, nos consultórios se multiplicam os pacientes insatisfeitos por não alcançarem esse padrão, como se fosse a “chave” para a felicidade. Segundo a psicoterapeuta Solange Rolla, muitos já chegam para serem atendidos com quadros de adoecimento, como depressão e crises de ansiedade.
“O que essa cultura faz é um ‘estupro’ na nossa consciência. Querer que a gente encontre um ideal que está longe de ser real. Às vezes, a pessoa está angustiada porque não tem um ‘par perfeito’, não tem a saúde maravilhosa, não está realizada profissionalmente, gerando uma frustração que adoece”, afirma.
Para trazer um pouco de leveza, a especialista tenta brincar com esses pacientes. “Costumo dizer que, se essa pessoa quer um mundo ideal, sinto muito, mas ela errou de planeta, porque o nosso é o da dualidade, desde as coisas mais concretas: dia e noite, quente e frio, doce e amargo, nascimento e morte. Ou seja, eu só sei o que é felicidade e bem-estar por saber também o que não é”, explica.
Expectativas. A filosofia, segundo Cortella, tem uma fórmula antiga que serve até de anedota: “Felicidade é igual realidade menos expectativas”. E complementa: “A felicidade é uma vibração intensa que você sente, uma vitalidade exuberante, mas ela não é um estado contínuo. São instantes, episódios em que você sente a vida te levar ao máximo. Vem daquilo que é essencial, amizade, lealdade, fraternidade, sexualidade e religiosidade”, ressalta.
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